0

Defluência

 Oi.

Olá.

Cruzaram-se e cumprimentaram-se feito dois estranhos

Nem a saudação, tampouco o presente dialogavam

No passado remoto, viveram um para o outro

Num futuro de devaneios, não estavam prontos

Não foram fortes o suficiente

Como se o amanhã dependesse de força e prontidão

O hoje simplesmente chega

Quando muito, cumprimenta e se apresenta

E, sob um riso desconcertado, se recorda do passado

As memórias são evocadas

Como substrato de frustrações efêmeras

E... Aquela viagem à praia?

E... Aquele natal com a sua família?

Certamente, as fotografias foram esquecidas em algum lugar do tempo

Depois de duas doses de qualquer bebida forte

Já percebeu como o tempo aprecia brincar de vento,

Apagando os rastros de tudo?

A vida seguiu

Não nos enganemos, o hoje amanhã, também, 

Daqui a pouco se tornará história

Fortuita e inacabada estória

Quando restará, para além das lembranças incipientes, 

As breves e singelas despedidas

Até mais.

Adeus.

Fernando Martilis


0

Ruínas

O caminhar do tempo esfacelou a vida

Foi-se tempo

Foi-se vida

As lembranças se desfizeram no passar dos dias

Escorreram entre os dedos

Mãos que não conseguiram segurar o tempo

Os pensamentos se perderam nos minutos

Passou tempo

Passou vida

O cheiro evaporou

Dissipou-se no ar

Apagou-se da memória

Desfez-se o domingo, o sábado e a sexta

A semana já passou, a noite também

Passou mais rápido que o normal

O carinho não mais te desperta

O sono cansado esmagou os sonhos 

O café com torradas não está mais na mesa

Nos perdemos no tempo que virou passado

Correu pelas mãos

Se foi a vida, diante do olhar cansado

Desfizeram as lembranças noite adentro

Meses afora

Amanheceu

Amanheceram

Os olhos se abriram, após um longo sono

Repousaram, enfim, sob o quê

Agora

Transformou-se num imenso vazio


Fernando Martilis



0

Desvanecer

Como eu queria ter chegado antes

Duas ou três noites

Teriam feito a diferença?

De quantas palavras eu precisaria para mudar tudo?

Você é feliz?

Algum decreto me daria o direito de apelar?

Algum tribunal aplacaria a minha angústia?

O tempo tem as suas próprias leis 

A vida também 

Um único segundo custava a decisão certa

Milhões de outros segundos desperdiçados 

Eu caberia naquela foto de casamento?

Estaria realizado esperando um filho contigo?

O teu sorriso se revela à minha verdade 

O meu vazio não cabe nas minhas perguntas 

Eu ainda deitei a cabeça no teu colo 

Ainda fiz do teu carinho a minha morada

Mesmo quando existir era flutuar caminho à solta

Sem teto, sem verbo, sem carne 

Me fiz esquecer 

E fui esquecido

Fernando Martilis

0

Anomalia no Tempo-Espaço

Não vai!

Hoje não, vai ser melhor

O portão estará fechado

E não será pelo motivo que você imagina

Definitivamente a escolha não era essa

O mundo vai girar debaixo dos teus pés

Na pior volta da tua vida pra casa.

Não volta!

Não faz isso

Pensa mais um pouco

É uma armadilha

Que você mesma ajudou a criar

Por causa do enorme medo que sente de ficar sozinha

E essa pode ser a tua melhor chance de ficar sozinha

Ninguém vai a lugar algum

Nada mudará de lugar.

Não fica!

Eu te suplico!

Não fica nesse lugar

Vai sugar tua vida

Tua esperança, forjada depois de tanto sofrimento

Será destruída

Não terá partilha

Não terá desfecho

Você não precisa disso

Não merece isso

Não permite!

Não aceita!

Não devolve!

Não chora, não

Não fraqueja

Agora não

Não...

Não há mais nada, que eu possa fazer agora

Você fez tudo o que precisava fazer.


Fernando Martilis